Apelação de Luiz Ferreira da Conceição

EGRÉGIA CORTE


COLENDA CÂMARA


EMÉRITO(A) RELATOR(A)


PRECLARO(A) PROCURADOR(A)





RAZÕES DO RECURSO



Requer a aplicação do artigo 71, do Estatuto do Idoso (Lei 10741/03), por ser maior de 60 anos, reclamando prioridade na tramitação, com a devida anotação desta em local visível dos autos.


Em 22/05/07, LUIZ FERREIRA DA CONCEIÇÃO (rectius: LUIZ PEREIRA DOS SANTOS), por seu assistente judicial, o representante do Ministério Público, com amparo no artigo 34, inciso V, da Lei Complementar Estadual nº. 013, de 25/10/1991, c.c. o artigo 109, da Lei Federal nº. 6.015/73, ajuizou a presente demanda para retificar seu registro de casamento, lavrado em 1958, no Cartório do Registro Civil de Mirador, pois nele não foi anotada a data de seu nascimento, constando, tão-somente que tinha 35 anos ao casar.


Requereu, ainda, [equivocadamente, adiante-se] a retificação do seu nome e o nome de sua genitora.


Preliminarmente, registre-se que, ao propor a demanda o representante do Ministério Público, por lapso, não apôs sua assinatura na petição. No entanto, em manifestação às fls. 11, item 6, os termos da inicial foram corroborados por outro representante, que, além disso, promoveu alterações na inicial, justamente para afastar os equivocados pedidos de (1)retificação do nome do assistido e (2)de sua genitora (fls. 11/12), requerendo, inclusive que o nome do assistido fosse anotado nos autos como LUIZ PEREIRA DOS SANTOS, qual consta na certidão de casamento de fls. 05.


Juntou cópia de seu batistério, expedido pela Paróquia Santa Cruz, de Barra do Corda, no qual consta, sob o nº 870, às fls. 187, do Livro 21, que em 24 de agosto de 1936, foi batizado LUIZ, filho de DUCÍLIA FERREIRA DA CONCEIÇÃO, nascido em 29 de outubro de 1935.


Em audiência (fls. 10), foram ouvidas duas testemunhas, RAIMUNDO PEREIRA DE CASTRO e GIRINALDO PEREIRA DE CASTRO, que conhecem o requerente desde que nasceram, mas não souberam dizer seu nome completo nem sua data de nascimento. No entanto, ambos afirmaram que a mãe do assistido se chamava DUCÍLIA.


A sentença, lamentavelmente, foi pela improcedência do pedido, razão pela qual só podemos nos valer dos luminares do Tribunal de Justiça, para corrigir o equívoco.


Vejamos:


Ao exame da sentença, revela-se nítida impressão que houve leitura desatenta da inicial e desprezo voluntário à manifestação de fls. 11/13.


Eis o que consta ao final da sentença:


Ademais, trata-se de retificação em documento público que é dotado de presunção relativa de veracidade, que para ser alterado impõe a existência de provas cabais, o que não é o caso dos autos que conta com documentos frágeis. Por fim, entendo que a prova testemunhal é imprestável, haja vista que nenhuma das testemunhas inquiridas souberam afirmar com exatidão a data de nascimento do autor e nem o nome completo da sua genitora, inviabilizando a adequação do seu nome ao suposto patronímico materno existente na Certidão de Batismo, bem como a retificação da sua data de nascimento.


Anote-se que, em nenhum momento existiu pedido para retificar a data de nascimento do assistido.


Diz-se que a sentenciante omitiu-se na leitura da manifestação de fls. 11/13, porque foi nesta que o assistente retificou a inicial, para excluir os pedidos relativos à (1)alteração do nome do assistido e (2)de sua genitora. Além do mais, às fls. 13, nos itens 17 e 18, procurou deixar ao máximo claro, evidente, indubitável, qual era a postulação em favor do assistido:



17. O que se busca é a inscrição da data de nascimento do assistido em seu registro de casamento, pois neste não consta nenhuma, para que possa ver expedidos seus documentos de identificação civil (identidade, profissional, cpf) e ter acesso ao benefício previdenciário.


18. Registre-se que o assistido não pleiteia que se altere sua data de nascimento para aumentar sua idade com vista a alcançar algum privilégio. Não. Não precisa disso. Ele precisa é de data de nascimento.”



Pedimos vênia para não deixar de clamar a atenção dos insignes integrantes dessa augusta Câmara Cível: O assistido não pleiteava retificar sua data de nascimento, para aumentar ou diminuir sua idade. Não. Ele buscava era ter data de nascimento.


O que ele ainda busca, agora, apelando a Vossas Excelências, é ter data de nascimento, porque não tem nenhuma. Só assim poderá obter seus documentos pessoais (RG, CPF, Título), exercer sua cidadania, alcançar seus direitos previdenciários, ter sua dignidade respeitada.


Isso a digna sentenciante não leu, não percebeu ou não tomou o interesse devido: o assistido não tem data de nascimento! Por imperativo, precisa de uma.


Falta de atenção? Falta de zelo? O que o cidadão pode fazer quando percebe que falta compromisso, sensibilidade e interesse na jurisdição? O que fazer quando se percebe que ao próprio Tribunal falece gosto para examinar questões desse jaez?


O que fazer quando falta experiência de vida a quem tem que decidir a vida dos outros?


É a experiência de vida que muitas vezes conta na hora de formular uma boa decisão. Os nascidos e criados exclusivamente nos grandes centros urbanos, não são obrigados a ter um conhecimento de todas as realidades que, há algumas décadas, envolviam a vida do povo rural. Muitos jovens juízes, promotores, assessores, nunca usaram uma sentina, beberam da bilha, subiram num pau-de-arara, usaram um tamborete, ou atinam para que também servia um sabugo. Saberiam o que é uma desobriga?


Assim, nem todos compreendem exatamente o que é um batistério, e a importância que sempre se lhe conferiu no contexto das questões relativas ao nascimento.


A certidão do registro de batismo da igreja católica, ao longo de muitas décadas, tem sido instrumento hábil para dirimir incontáveis dúvidas, retificar muitos erros e suprir omissões na seara dos registros públicos. Nas paróquias, há livros próprios e bem guardados onde são feitas as anotações relacionadas à aplicação do sacramento do batismo. As certidões são expedidas após consultas a esses livros.


A gratuidade do registro civil só tem uma década (Lei 9.534/97). Antes disso, para a maioria desafortunada, o registro ficava à mercê dos interesses dos alcaides e edis, candidatos a cargos eletivos, que custeavam o deslocamento dos cartórios e faziam a patuscada. Ainda hoje, a regularização de muitas uniões estáveis depende do maior ou menor interesse de alguns magistrados sensíveis às demandas do povo, em sintonia com o programa de casamentos comunitários estimulado pelo Tribunal de Justiça.


A pujança da igreja católica atraía a confiança dos cidadãos para depositarem nela seus sentimentos familiares e suas conveniências sociais. Batizados e casamentos, eram, para lá de sacramentos, eventos de integração ou afirmação social. Por tal razão, muita gente, ainda hoje, não dispensa o batizado e o casamento religiosos, mesmo que tenha um miúdo estoque de fé nas fórmulas eclesiásticas.


De fato, o nome da mãe do assistido inscrito no batistério (DUCÍLIA FERREIRA DA CONCEIÇÃO) não confere com o nome anotado no registro de casamento (MARIA PEREIRA DOS SANTOS). Isso é óbvio de se ver. A questão inteligente é analisar o contexto presente nos autos e o que se pode inferir do passado remoto quando foram produzidos esses documentos, para se aquilatar, dentro de um juízo de probabilidade razoável, se, embora destoantes, se referem à mesma pessoa.


O presente caso cuida de jurisdição voluntária, não há parte a ser vencida, não há interesse a sucumbir, tanto que “ao juiz é lícito investigar livremente os fatos e ordenar de ofício a realização de quaisquer provas.(CPC, 1107)


Nos autos fala LUIZ PEREIRA DOS SANTOS, um analfabeto, de 72 anos, lavrador dos rincões do Município de Mirador, do povoado “Negro Velho”, pra lá das terras da Travessia, bem conhecidas do Desembargador Raymundo Liciano de Carvalho, a mais de 100 km da cidade, fazendo fronteira com o Município de Barra do Corda. Ele ostenta uma certidão de casamento com o grave defeito de não ter data de nascimento, na qual consta que teria 35 anos ao casar, em 1958, o que lhe conferiria, hoje, 85 anos, uma idade que rejeita, pois não confere com a verdade.


Ele procurou o Ministério Público que intentou a demanda como assistente. Foi chamado em juízo. Compareceu. Trouxe duas pessoas que o conhecem desde crianças. Mas, seria ele um ardiloso fraudador? Estaria fazendo astúcias com algum grupo de “sanguessugas”, disposto a lograr promotores e juízes incautos, e fazer caixa com a venda de documentos? Ou seria um mísero cidadão à cata de almas irmãs, que, dotadas de poder e sensibilidade, resolvessem esse problema que lhe priva a própria cidadania?


Por qual motivo trouxe a juízo um batistério (fls. 04) cujo nome da mãe não confere com o nome inscrito no casamento (fls. 05)? Por uma razão muito óbvia. Porque este é o seu. Não poderia apresentar outro, fabricar outro, inventar outro, porque só este, mesmo com o imbróglio dos nomes, pertence ao LUIZ, filho da DUCÍLIA.


Como dito antes, a experiência de vida conta. Nos tempos de antanho (1935, 1958), quando não havia estradas, transportes, rádio, televisão, poder judiciário bem estruturado, serventias bem organizadas, [quiçá tivessem máquina de escrever], legislação registral rígida, regesta etc, como eram lavrados os registros públicos?


O caso dos autos é um exemplo: casamento sem data de nascimento! Há dezenas desses em Mirador. Em mais de 4 anos, já enfrentamos uma centena de retificações.


O batismo (fls. 09) foi registrado em 1936. O casamento (fls. 05), em 1958, 22 anos após! O mais provável é que, tanto nessa quanto naquela ocasião, não se tenha exibido nenhum documento da mãe do assistido. E os casamentos, para o povo fraco de posses, ainda mais naquela época, eram um grande prato para os políticos, que, muitas vezes, eles próprios “levavam os nomes para o cartório”, informando-os como bem entendiam que fossem.


Os mais vividos sabem que não se levavam certidões do registro civil para a pia batismal. Os nomes eram ditos “de memória” pelos interessados. A Igreja não as exigia até porque, geralmente, não eram mesmo registrados. E, não custa lembrar que, os próprios cartórios, até recente tempo, registravam um bom número de almas sem que os pais dos registrandos fossem previamente inscritos no registro civil.


No cotidiano das audiências, qualquer magistrado percebe quantas pessoas não sabem o nome completo dos pais, irmãos e filhos. Uns se atrapalham nos prenomes; a maioria, nos sobrenomes. Isso, ainda, hoje; imagine-se, então, em 1936 e 1958; e analfabetos. Quantos juízes, promotores desembargadores ou procuradores sabem os nomes completos dos funcionários e vizinhos com os quais convivem durante décadas?


O esquadro para o bom juiz é o bom senso. É isso o que aponta o artigo 1.109, do Código de Processo Civil.


Insistimos. Não obstante a divergência no nome da mãe, constatada entre o registro de casamento (MARIA PEREIRA DOS SANTOS) e o batistério (DUCÍLIA FERREIRA DA CONCEIÇÃO), tal fato não é bastante para afirmar que o assistido não é o LUIZ filho de DUCÍLIA.


Ambas as testemunhas, embora não soubessem o nome completo e a data de nascimento do assistido, conhecem-no desde que eram crianças como LUIZ, e sabem que a genitora dele se chama DUCÍLIA (fls. 10).


Esse tipo de fato (ser conhecido por dois nomes diferentes) não é tão incomum. No Fórum de Mirador, até 2004, trabalhava o oficial de justiça que todos chamavam de JOÃO DO HEREMITAS, cujo nome de registro é CARLOS DAMON FEITOSA GOMES.


O nome DUCÍLIA é incomum. Difícil encontrar outro. De acordo com o batistério de 1936, DUCÍLIA é mãe de LUIZ. Esse LUIZ é o mesmo da certidão de casamento em questão. Por razões que não lhe pertencem, o nome de sua mãe não foi inscrito na forma correspondente com a do batistério. Apesar disso, aquele batistério é o do assistido.


Ele não quer retificar sua data de nascimento. Como dito e redito: ele não tem data de nascimento. Ele precisa de uma. Ele não quer aumentar sua idade para obter uma aposentaria rural. O INSS exige 60 anos para o lavrador. Pelo registro de casamento ele teria 85. Seu batistério afirma que ele tem 72. Em ambas as hipóteses teria idade sobrando; não precisaria de nenhum expediente escuso para alcançar um benefício previdenciário. Só não pode pleitear esse ou outro direito porque não tem data de nascimento.


O Sr. LUIZ PEREIRA DOS SANTOS é pessoa de extrema pobreza e devia ter sido mais respeitado como cidadão. Mereceria um tratamento melhor do juízo? Ou não? Se este não estava positivamente convencido sobre a data de nascimento, que custaria utilizar o artigo 1107 do CPC, para investigar livremente os fatos e ordenar de ofício a realização de quaisquer provas? Sim, o que custaria?


Das duas uma, ou lhe conferia a data que o assistido diz ter com base em seu batistério (29/10/1935), ou a data condizente com a idade que foi anotada em seu registro de casamento (35 anos em 1958). Só não podia era deixar de mãos abanando o pobre que implora pelos poderes exclusivos de quem podia resolver seu problema.


Cremos que esta Colenda Câmara Cível há de fazer justiça. A prova indiciária acostada às fls. 04, aliada à suficiente informação testemunhal e à exposição dos fatos anotados na manifestação de fls. 11/13 e aos argumentos expendidos nestas razões, são de molde a reconhecer o direito do assistido de ver inserido em seu registro de casamento a sua data de nascimento.


Por todo o exposto, a r. sentença, data maxima venia, deve ser reformada para determinar a retificação do registro de nascimento do assistido, fazendo incluir sua data de nascimento: 29 de outubro de 1935.


O assistido roga a Vossas Excelências que não o deixem muito tempo sem data de nascimento, porque não podendo mais exercer com denodo o árduo trabalho de lavrador, pois a idade lhe vem roubando as forças e a saúde, haverá de buscar o benefício previdenciário a que faz jus para garantir sua sobrevivência, mas não poderá alcançá-lo enquanto, mesmo tendo idade além da conta, não tiver uma data de nascimento para ver expedidos seus documentos, razão pela qual reclama, também, a aplicação do artigo 71, do Estatuto do Idoso (Lei 10741/03), para conferir prioridade na tramitação do presente feito.


O assistido, por evidente, não pede favores. Reclama respeito. Reclama atenção. Reclama Justiça!


Por fim, além da questão substancial do apelo, cremos que seria de bom alvitre que o Tribunal de Justiça, por suas Câmaras e pelos Procuradores de Justiça com assento nelas, não fechassem os olhos e, de alguma forma, também, passassem a se manifestar sobre o modo como os processos são conduzidos na primeira instância, no que diz respeito ao interesse e diligência do magistrado em favor do direito constitucional à prestação jurisdicional célere (CF, 5º, LXXVIII) e eficaz.


O processo não é propriedade privada do magistrado para que ele o conduza como bem lhe apetecer. Quanto a isso, não há dúvida: “O processo tem impulso oficial. Ao magistrado cumpre zelar pela celeridade e disciplina do processo.” (STJ - REsp 7.304/CE - Min. Luiz Vicente Cernicchiaro).


Membros do Ministério Público, magistrados, defensores, advogados, não podemos achar que toda e qualquer morosidade na justiça se pode desculpar sob o biombo do excesso de processos. Não! Como dizia Bertold Brecht, também, “nós pedimos com insistência: nunca digam, isso é natural!


Se queremos mudanças, temos que participar delas e não apenas esperar que “os outros” mudem.


Colhemos a propósito, as palavras do presidente desta Corte: “Acho que estão certos aqueles que proclamam que o judiciário precisa ser reformado. No entanto, há que se ter em mente que essa reforma não pode apenas ser de estruturas e de processos. É fundamental que mude também a mentalidade dos operadores do Direito e da própria sociedade. Precisamos de uma mudança de cultura”. [Des. Raimundo Cutrim, Presidente do TJ-MA, 22/02/08, Rio Poty Hotel]


Vejamos o caso dos autos.


A petição inicial deu entrada em 22/05/07 (fls. 02), mas só foi autuada mais de 40 dias após, em 16/07/07 (capa). Autos conclusos em 20/07/07 (fls. 06v), só receberam despacho inicial depois de mais de 130 dias!, em 05/12/07 (fls. 07).


Não há excesso de processos que, honestamente, justifique a falta de zelo com esse e com tantos outros processos, o que poderia ser constatado numa diligente correição. E na Comarca de Mirador nem há processos em demasia.


Não seria razoável representar o magistrado em cada negligência processual, porém, se pelo menos naqueles processos que sobem à Corte, os Procuradores de Justiça e os Desembargadores olhassem, também, essas questões, cremos que aquelas palavras do Des. Raimundo Cutrim deixariam de servir ao vento para alcançarem um sentido prático, real, palpável, com possíveis bons resultados em favor da melhoria da prestação jurisdicional. Ao contrário, se cerrarmos os olhos em favor das eternas conveniências, ou cultuarmos a conivência dos melindres, vamos exigir mudança de mentalidade de quem?


É, também, como apelamos.


Mirador (MA), Qua, 7 de Maio de 2008.



Juarez Medeiros Filho

Promotor de Justiça