Carta aberta à Justiça Eleitoral
Belém do Pará
Amazônia – Brasil
Maio, 2008
Belém do Pará
Amazônia – Brasil
Maio, 2008
.
Prezada senhora,
Há dois anos, escrevi-lhe uma carta aberta, confessando-lhe, com todo o respeito, a grande paixão de trinta e seis anos (hoje, de trinta e oito anos) que nutro pela senhora. Nessas quase quatro décadas, obcecado pela sua figura, estudei com afinco a sua história, a sua trajetória, os seus acertos e desacertos.
E foi assim que eu aprendi que a senhora foi chamada pela Revolução de 1930 para por ordem no processo eleitoral que o anterior Sistema de Verificação dos Poderes (vérification du pouvoirs), comandado pelo Poder Legislativo da época, tão corrupto quanto o de hoje, transformara numa zona de meretrício.
Com a sua reconhecida imparcialidade e sabedoria, a senhora foi acabando, ao longo do tempo, com o mapismo, com a eleição a bico de pena, enfim, com o carcomido sistema da República Velha – aquele do coronelismo, enxada e voto, tão bem descrito pelo ministro Victor Nunes Leal.
Foi uma luta e tanta, muito árdua. Mas a senhora saiu vencedora: a urna eletrônica, que a senhora inventou, acabou de vez com a agonia dos candidatos que dormiam eleitos e acordavam derrotados, ou vice-versa; e a senhora baniu, definitivamente, da crônica dos costumes eleitorais, o emprenhamento das urnas que ocorriam bem debaixo das baionetas encarregadas de vigiá-las.
Por causa disso, ouso dizer que a senhora não envelheceu, pelo contrário, rejuvenesceu e ficou até mais bonita aos setenta e tantos anos.
Mas isso, minha senhora, não me impede de notar no seu perfil uma ruga aqui, uma celulite ali, um pé-de-galinha acolá. Nada que um bom bisturi hermenêutico ou uma lipoaspiração jurisprudencial não possam dar jeito de imediato, seja para remover o tecido necrosado, seja para tirar o excesso de gordura. Basta querer.
Mas, olhe, bela senhora, o Brasil já não suporta mais esperar. Nossa última esperança é que a senhora mesma decida reformar os (maus) costumes políticos que ainda vigoram entre nós.
Não espere pela reforma dos nossos amados legisladores. O Congresso Nacional não tem legitimidade para legislar sobre eleições, porque, é claro, a raposa não é parte legítima para regulamentar o galinheiro.
As leis que eles fazem, a senhora bem sabe, trazem um discurso bonitinho no caput e cem mil rotas de fuga nos parágrafos, incisos e alíneas. E é por aí que as raposas escapam da sua vigilância.
Só a senhora pode mudar esse estado de coisas. Faça como fez com a fidelidade partidária ou a verticalização das coligações: crie jurisprudência.
Não importa que se espalhe na blogosfera que a senhora está é querendo legislar. A judicialização da política é conseqüência da generalização da corrupção. E a jurisprudência, minha senhora, também é fonte do Direito enquanto ciência.
Esperar que sanguessugas e mensaleiros eleitos e reeleitos aprimorem a lei atual, é pura perda de tempo. Eles jamais farão isso, porque é contra sua natureza de escorpião.
Na carta que lhe mandei há dois anos, perguntei-lhe: o que a senhora espera para declarar caduco e sem validade o artigo 81 da Lei das Eleições, que data de 1997?
Esse dispositivo é que autoriza as doações financeiras de bancos e grandes empresas, muitas delas de bicheiros e traficantes, para as campanhas eleitorais.
Trata-se de uma disposição transitória que só valeria para as eleições de 1998. Não pode, portanto, ficar deitada eternamente em berço esplêndido como se fosse uma disposição legal permanente.
Como a senhora bem sabe, essas doações financeiras são o calcanhar de Aquiles do sistema eleitoral brasileiro. É aí que prolifera o vírus da corrupção eleitoral e da bandalheira administrativa. Se esse dispositivo já está caduco, o que falta para ser declarada a caducidade?
Por favor, minha boa senhora, não deixe a televisão desvirtuar o processo eleitoral. Exija que priorizem a exposição de idéias e não restrinjam as campanhas ao marketing ilusionista ou à chatice da exposição semanal (ou até diária) dos índices das pesquisas de opinião.
Por que a senhora tolera essas convenções partidárias de araque, efetuadas, à revelia das bases do Partido, por meia dúzia de caciques que se fazem donos de siglas de aluguel?
A lei diz que os prazos eleitorais são contínuos e peremptórios. E que o prazo fatal para a escolha de candidatos e coligações é o dia 30 de junho. Por que a senhora admite as manobras desses mequetrefes partidários que espicham o prazo até o dia 5 de julho e aproveitam a sobra de tempo para aprimorar as negociatas e os planos de assalto aos cofres públicos?
Há dois anos pedi-lhe, e torno a pedir agora, que a senhora bote um freio na reeleição (a pior praga já instituída na história deste País), exigindo, por exemplo, a desincompatibilização, para garantir a igualdade de oportunidade entre os candidatos que se assenta no princípio constitucional da isonomia.
Se a isonomia é a maior das nossas garantias constitucionais, por que será que a senhora não dá ao instituto da reeleição uma “interpretação conforme a Constituição”, fazendo prevalecer o princípio isonômico, pois o continuísmo, por melhor que seja o governo, compromete a boa e salutar rotatividade do poder, inerente ao regime democrático e ao sistema republicano.
Mas, olhe, minha senhora, a tese do terceiro mandato já está nas bocas (e vai que o homem resolve querer contar seus mandatos pelos dedos da mão direita?...). Portanto,não marque bobeira, apresse-se.
Pedi-lhe, há dois anos, e peço de novo agora: ponha cobro no despudorado uso das máquinas administrativas, inclusive nessa sem-vergonhice com que utilizam o dinheiro público, os aviões e o aparato de segurança oficiais para realizar eventos já rotulados de pactóides, mas que a própria “mãe do PAC” chamou maternalmente pelo nome verdadeiro de comícios.
Se a senhora quiser, pode impedir que os palácios oficiais se transformem em comitês de campanhas, já que as famosas “exceções da lei” eleitoral são inconstitucionais, porquanto violadoras do princípio da igualdade de oportunidades entre os candidatos.
Enfim, minha senhora, há tanta coisa dependendo exclusivamente do seu querer e do seu inegável poder.
Há dois anos, escrevi-lhe o seguinte: “Não se apequene. Não fique só preocupada em medir o tamanho das placas de propaganda ou em prender cabo eleitoral que faz boca de urna. Pense grande. Vá direto na jugular do monstro que está matando a democracia.”
Um quelóide que muito enfeia o seu visual, minha senhora, e que precisa ser removido de imediato, é o voto obrigatório. No atual estágio da evolução política, não subsiste nenhuma razão histórica, sociológica ou política para obrigar o cidadão a votar.
O voto é a maior expressão da liberdade humana. O voto compulsório é uma violência contra a liberdade de cada um. Mais do que um dever cívico, o voto é um direito cívico: seu exercício deve ocorrer absolutamente a salvo de peias, não pode ser imposto por ninguém nem em nome do que quer que seja.
Democracia e cidadania jamais florescem sob a força do baraço e do cutelo. Voto obrigatório soa a voto de cabresto, remete a curral eleitoral. Dê ao exercício do voto nova interpretação “conforme a Constituição”, porque a Constituição consagra a plena liberdade do ser humano e do cidadão.
Repare nos “debates” entre os candidatos: cada qual quer provar que o outro é mais corrupto e desonesto ou que está mais cercado de corruptos e desonestos. Ninguém proclama a própria honestidade, limita-se a alardear a desonestidade do adversário. Faz sentido, então, ter que escolher, obrigatoriamente, apenas entre corruptos e desonestos?
Com o voto compulsório, minha escolha recairá, inelutavelmente, num autêntico ou potencial patife. Obrigado a escolher tão mal e porcamente, estarei apenas contribuindo para eternizar um sistema eleitoral altamente degenerado e nocivo à sociedade, ao País e à Nação.
Para a maioria ibopeana ou datafolheana, isso talvez não tenha importância. Questões de ética já não comovem as massas. O povo, como o Rei da fábula de Andersen, está nu. Mas eu me pergunto: por que diabos terei de votar no mais do mesmo que sabidamente não presta?
Não deixe que nos enganem com a popularidade comprada com o Bolsa Famélica e sua flora acompanhante: o Bolsa Trabalho, o Bolsa MST, o Bolsa ONG, o Bolsa Ditadura, e um punhado de outras bolsas que fazem os valorosos formadores da opinião de outrora calarem a boca.
Essas bolsas tornaram-se, em poucos anos, o maior programa de compra de votos dos miseráveis da história do País. Dele se pode muito bem dizer o que Karl Marx disse da religião: “É o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas”.
Em outras palavras: o programa de bolsas “é o ópio do povo”, na incomparável expressão de Marx, que a esquerda, ao galgar o poder, tratou de esquecer (ou será que, justamente, não esqueceu e resolveu por em prática, para usufruir, às custas da burra da Nação, as mordomias tão criticadas no antecessor?)
De fato, amada senhora, empanturrado com a migalha que lhe pinga dos cofres públicos todos os meses, garantindo-lhe o jaraqui sem precisar ter que pescar, o povo rendeu-se à fatalidade do seu destino à Nelson Rodrigues: sentou no meio fio e curte, como que maconhado, a síndrome de Estocolmo (essa estranha dependência afetiva e cumplicidade que se estabelecem entre os corrompidos e seus corruptores, que é o traço mais marcante dos dias atuais, mesmo com o País fazendo piruetas no investiment grade).
Na outra ponta, minha senhora, o programa de remuneração da especulação financeira permite à classe empresarial auferir lucros nunca dantes auferidos, mercê dos altos juros pagos sobre os títulos do governo com o dinheiro dos impostos que nós pagamos: “É o ópio das Zelites”, eu ousaria dizer, sem o mesmo brilho do velho Marx.
Dessa forma, com a base e o topo da pirâmide social assim entorpecidos de tanto ópio, o povo e as elites entregam-se à frouxidão da ética, à leniência moral e à solidariedade cúmplice para com os mensaleiros, os aloprados, os vampiros, os sanguessugas, os fabricantes de dossiês e todos aqueles que, munidos de cartões corporativos, fazem da Administração Pública não só a casa da mãe Joana, mas, literalmente, a casa da sogra.
Ah, não, minha senhora, não me obrigue a escolher tão mal. Não me obrigue a optar entre o péssimo e o ruim, entre o roto e o esfarrapado. Não é justo! Para a legítima defesa da minha consciência ética, só disponho dos instrumentos da abstenção e do voto nulo ou em branco. Não me condene por usá-los.
Antes de me condenar por isso, a senhora devia me oferecer um meio mais seguro para uma escolha consciente e ética, até porque a senhora tem o dever de garantir que o meu voto não seja um voto robotizado, um voto sem alma, totalmente desprovido de poder reformador.
Como lhe sugeri há dois anos atrás, amada senhora, por que não começar a reforma política pelo registro unicamente de candidatos acima de qualquer suspeita?
A senhora tem a caneta. Se a senhora indeferir, numa só canetada, o registro de candidatos metidos em patifarias, o que é que eles poderão fazer, a não ser plantar batatas?
Já está na hora, douta senhora, de barrar, sem muita lengalenga, a candidatura dos que exibem notórios prontuários, em vez de bons antecedentes. Ou dos que abusam do poder político ou do poder econômico.
Ouça, a respeito, a voz do seu novo presidente, o Dr. Carlos Ayres de Britto.
Ao contrário do Pelé, que, calado, “é um poeta”, segundo a insuspeita opinião do Romário, eu lhe afianço que, falando, o Dr. Carlos Ayres é que é um poeta. Veja só esta pérola do seu pensamento: “O Direito não pode ignorar a realidade. Quando o direito ignora a realidade, a realidade dá o troco”.
E o troco, nesses casos, todos sabemos, é um só: o desvio do dinheiro público para os bolsos (e bolsas) privados.
Escute bem o que disse também Carlos Ayres de Britto: “A Constituição fala de candidato no sentido de cândido, puro, pessoa depurada do ponto de vista ético”.
Por conseguinte, se essa gente é suja e responde a processos por falcatruas e toda sorte de improbidade não pode e não merece ser candidato, pois falta-lhe um requisito primordial: a vida pregressa ilibada, fundamental, sine qua non, tão indispensável quanto inafastável para o exercício de qualquer função pública.
Portanto, minha douta senhora, o que a senhora espera para rodar a baiana e declarar guerra aos que “namoram com a delitividade” (outra expressão de Carlos Ayres, que deveria ser entoada como um poema em todos os Palácios da Justiça).
A parte do Brasil que não corrompe e nem se deixa corromper está torcendo para que a senhora aplique nos corruptos (e também nos corrompidos que se deixam docemente corromper) uma bela surra com a aroeira de mato virgem de suas implacáveis decisões jurisprudenciais.
Estou louco para cumprir o tal do meu dever cívico. Da mesma forma que para exercer o meu direito se o voto for facultativo. Mas, como todo cidadão pouco chegado a qualquer tipo de ópio e ansioso pela restauração da moralidade, aguardo, para este pleito, já, já, as boas novas da sua parte.
Neste País, conseguiram transformar a esperança em dejetos orgânicos de muito mau cheiro. Mas, se a senhora quiser, a esperança pode ser desinfetada e restabelecida para o gáudio da sociedade. Para a senhora, querida dama, querer é Poder.
Afetuosamente e até 2010,
Luiz Ismaelino Valente
Procurador de Justiça Aposentado e advogado
Ex-docente de Direito Eleitoral na ESM-PA e na FESMP-PA
Há dois anos, escrevi-lhe uma carta aberta, confessando-lhe, com todo o respeito, a grande paixão de trinta e seis anos (hoje, de trinta e oito anos) que nutro pela senhora. Nessas quase quatro décadas, obcecado pela sua figura, estudei com afinco a sua história, a sua trajetória, os seus acertos e desacertos.
E foi assim que eu aprendi que a senhora foi chamada pela Revolução de 1930 para por ordem no processo eleitoral que o anterior Sistema de Verificação dos Poderes (vérification du pouvoirs), comandado pelo Poder Legislativo da época, tão corrupto quanto o de hoje, transformara numa zona de meretrício.
Com a sua reconhecida imparcialidade e sabedoria, a senhora foi acabando, ao longo do tempo, com o mapismo, com a eleição a bico de pena, enfim, com o carcomido sistema da República Velha – aquele do coronelismo, enxada e voto, tão bem descrito pelo ministro Victor Nunes Leal.
Foi uma luta e tanta, muito árdua. Mas a senhora saiu vencedora: a urna eletrônica, que a senhora inventou, acabou de vez com a agonia dos candidatos que dormiam eleitos e acordavam derrotados, ou vice-versa; e a senhora baniu, definitivamente, da crônica dos costumes eleitorais, o emprenhamento das urnas que ocorriam bem debaixo das baionetas encarregadas de vigiá-las.
Por causa disso, ouso dizer que a senhora não envelheceu, pelo contrário, rejuvenesceu e ficou até mais bonita aos setenta e tantos anos.
Mas isso, minha senhora, não me impede de notar no seu perfil uma ruga aqui, uma celulite ali, um pé-de-galinha acolá. Nada que um bom bisturi hermenêutico ou uma lipoaspiração jurisprudencial não possam dar jeito de imediato, seja para remover o tecido necrosado, seja para tirar o excesso de gordura. Basta querer.
Mas, olhe, bela senhora, o Brasil já não suporta mais esperar. Nossa última esperança é que a senhora mesma decida reformar os (maus) costumes políticos que ainda vigoram entre nós.
Não espere pela reforma dos nossos amados legisladores. O Congresso Nacional não tem legitimidade para legislar sobre eleições, porque, é claro, a raposa não é parte legítima para regulamentar o galinheiro.
As leis que eles fazem, a senhora bem sabe, trazem um discurso bonitinho no caput e cem mil rotas de fuga nos parágrafos, incisos e alíneas. E é por aí que as raposas escapam da sua vigilância.
Só a senhora pode mudar esse estado de coisas. Faça como fez com a fidelidade partidária ou a verticalização das coligações: crie jurisprudência.
Não importa que se espalhe na blogosfera que a senhora está é querendo legislar. A judicialização da política é conseqüência da generalização da corrupção. E a jurisprudência, minha senhora, também é fonte do Direito enquanto ciência.
Esperar que sanguessugas e mensaleiros eleitos e reeleitos aprimorem a lei atual, é pura perda de tempo. Eles jamais farão isso, porque é contra sua natureza de escorpião.
Na carta que lhe mandei há dois anos, perguntei-lhe: o que a senhora espera para declarar caduco e sem validade o artigo 81 da Lei das Eleições, que data de 1997?
Esse dispositivo é que autoriza as doações financeiras de bancos e grandes empresas, muitas delas de bicheiros e traficantes, para as campanhas eleitorais.
Trata-se de uma disposição transitória que só valeria para as eleições de 1998. Não pode, portanto, ficar deitada eternamente em berço esplêndido como se fosse uma disposição legal permanente.
Como a senhora bem sabe, essas doações financeiras são o calcanhar de Aquiles do sistema eleitoral brasileiro. É aí que prolifera o vírus da corrupção eleitoral e da bandalheira administrativa. Se esse dispositivo já está caduco, o que falta para ser declarada a caducidade?
Por favor, minha boa senhora, não deixe a televisão desvirtuar o processo eleitoral. Exija que priorizem a exposição de idéias e não restrinjam as campanhas ao marketing ilusionista ou à chatice da exposição semanal (ou até diária) dos índices das pesquisas de opinião.
Por que a senhora tolera essas convenções partidárias de araque, efetuadas, à revelia das bases do Partido, por meia dúzia de caciques que se fazem donos de siglas de aluguel?
A lei diz que os prazos eleitorais são contínuos e peremptórios. E que o prazo fatal para a escolha de candidatos e coligações é o dia 30 de junho. Por que a senhora admite as manobras desses mequetrefes partidários que espicham o prazo até o dia 5 de julho e aproveitam a sobra de tempo para aprimorar as negociatas e os planos de assalto aos cofres públicos?
Há dois anos pedi-lhe, e torno a pedir agora, que a senhora bote um freio na reeleição (a pior praga já instituída na história deste País), exigindo, por exemplo, a desincompatibilização, para garantir a igualdade de oportunidade entre os candidatos que se assenta no princípio constitucional da isonomia.
Se a isonomia é a maior das nossas garantias constitucionais, por que será que a senhora não dá ao instituto da reeleição uma “interpretação conforme a Constituição”, fazendo prevalecer o princípio isonômico, pois o continuísmo, por melhor que seja o governo, compromete a boa e salutar rotatividade do poder, inerente ao regime democrático e ao sistema republicano.
Mas, olhe, minha senhora, a tese do terceiro mandato já está nas bocas (e vai que o homem resolve querer contar seus mandatos pelos dedos da mão direita?...). Portanto,não marque bobeira, apresse-se.
Pedi-lhe, há dois anos, e peço de novo agora: ponha cobro no despudorado uso das máquinas administrativas, inclusive nessa sem-vergonhice com que utilizam o dinheiro público, os aviões e o aparato de segurança oficiais para realizar eventos já rotulados de pactóides, mas que a própria “mãe do PAC” chamou maternalmente pelo nome verdadeiro de comícios.
Se a senhora quiser, pode impedir que os palácios oficiais se transformem em comitês de campanhas, já que as famosas “exceções da lei” eleitoral são inconstitucionais, porquanto violadoras do princípio da igualdade de oportunidades entre os candidatos.
Enfim, minha senhora, há tanta coisa dependendo exclusivamente do seu querer e do seu inegável poder.
Há dois anos, escrevi-lhe o seguinte: “Não se apequene. Não fique só preocupada em medir o tamanho das placas de propaganda ou em prender cabo eleitoral que faz boca de urna. Pense grande. Vá direto na jugular do monstro que está matando a democracia.”
Um quelóide que muito enfeia o seu visual, minha senhora, e que precisa ser removido de imediato, é o voto obrigatório. No atual estágio da evolução política, não subsiste nenhuma razão histórica, sociológica ou política para obrigar o cidadão a votar.
O voto é a maior expressão da liberdade humana. O voto compulsório é uma violência contra a liberdade de cada um. Mais do que um dever cívico, o voto é um direito cívico: seu exercício deve ocorrer absolutamente a salvo de peias, não pode ser imposto por ninguém nem em nome do que quer que seja.
Democracia e cidadania jamais florescem sob a força do baraço e do cutelo. Voto obrigatório soa a voto de cabresto, remete a curral eleitoral. Dê ao exercício do voto nova interpretação “conforme a Constituição”, porque a Constituição consagra a plena liberdade do ser humano e do cidadão.
Repare nos “debates” entre os candidatos: cada qual quer provar que o outro é mais corrupto e desonesto ou que está mais cercado de corruptos e desonestos. Ninguém proclama a própria honestidade, limita-se a alardear a desonestidade do adversário. Faz sentido, então, ter que escolher, obrigatoriamente, apenas entre corruptos e desonestos?
Com o voto compulsório, minha escolha recairá, inelutavelmente, num autêntico ou potencial patife. Obrigado a escolher tão mal e porcamente, estarei apenas contribuindo para eternizar um sistema eleitoral altamente degenerado e nocivo à sociedade, ao País e à Nação.
Para a maioria ibopeana ou datafolheana, isso talvez não tenha importância. Questões de ética já não comovem as massas. O povo, como o Rei da fábula de Andersen, está nu. Mas eu me pergunto: por que diabos terei de votar no mais do mesmo que sabidamente não presta?
Não deixe que nos enganem com a popularidade comprada com o Bolsa Famélica e sua flora acompanhante: o Bolsa Trabalho, o Bolsa MST, o Bolsa ONG, o Bolsa Ditadura, e um punhado de outras bolsas que fazem os valorosos formadores da opinião de outrora calarem a boca.
Essas bolsas tornaram-se, em poucos anos, o maior programa de compra de votos dos miseráveis da história do País. Dele se pode muito bem dizer o que Karl Marx disse da religião: “É o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas”.
Em outras palavras: o programa de bolsas “é o ópio do povo”, na incomparável expressão de Marx, que a esquerda, ao galgar o poder, tratou de esquecer (ou será que, justamente, não esqueceu e resolveu por em prática, para usufruir, às custas da burra da Nação, as mordomias tão criticadas no antecessor?)
De fato, amada senhora, empanturrado com a migalha que lhe pinga dos cofres públicos todos os meses, garantindo-lhe o jaraqui sem precisar ter que pescar, o povo rendeu-se à fatalidade do seu destino à Nelson Rodrigues: sentou no meio fio e curte, como que maconhado, a síndrome de Estocolmo (essa estranha dependência afetiva e cumplicidade que se estabelecem entre os corrompidos e seus corruptores, que é o traço mais marcante dos dias atuais, mesmo com o País fazendo piruetas no investiment grade).
Na outra ponta, minha senhora, o programa de remuneração da especulação financeira permite à classe empresarial auferir lucros nunca dantes auferidos, mercê dos altos juros pagos sobre os títulos do governo com o dinheiro dos impostos que nós pagamos: “É o ópio das Zelites”, eu ousaria dizer, sem o mesmo brilho do velho Marx.
Dessa forma, com a base e o topo da pirâmide social assim entorpecidos de tanto ópio, o povo e as elites entregam-se à frouxidão da ética, à leniência moral e à solidariedade cúmplice para com os mensaleiros, os aloprados, os vampiros, os sanguessugas, os fabricantes de dossiês e todos aqueles que, munidos de cartões corporativos, fazem da Administração Pública não só a casa da mãe Joana, mas, literalmente, a casa da sogra.
Ah, não, minha senhora, não me obrigue a escolher tão mal. Não me obrigue a optar entre o péssimo e o ruim, entre o roto e o esfarrapado. Não é justo! Para a legítima defesa da minha consciência ética, só disponho dos instrumentos da abstenção e do voto nulo ou em branco. Não me condene por usá-los.
Antes de me condenar por isso, a senhora devia me oferecer um meio mais seguro para uma escolha consciente e ética, até porque a senhora tem o dever de garantir que o meu voto não seja um voto robotizado, um voto sem alma, totalmente desprovido de poder reformador.
Como lhe sugeri há dois anos atrás, amada senhora, por que não começar a reforma política pelo registro unicamente de candidatos acima de qualquer suspeita?
A senhora tem a caneta. Se a senhora indeferir, numa só canetada, o registro de candidatos metidos em patifarias, o que é que eles poderão fazer, a não ser plantar batatas?
Já está na hora, douta senhora, de barrar, sem muita lengalenga, a candidatura dos que exibem notórios prontuários, em vez de bons antecedentes. Ou dos que abusam do poder político ou do poder econômico.
Ouça, a respeito, a voz do seu novo presidente, o Dr. Carlos Ayres de Britto.
Ao contrário do Pelé, que, calado, “é um poeta”, segundo a insuspeita opinião do Romário, eu lhe afianço que, falando, o Dr. Carlos Ayres é que é um poeta. Veja só esta pérola do seu pensamento: “O Direito não pode ignorar a realidade. Quando o direito ignora a realidade, a realidade dá o troco”.
E o troco, nesses casos, todos sabemos, é um só: o desvio do dinheiro público para os bolsos (e bolsas) privados.
Escute bem o que disse também Carlos Ayres de Britto: “A Constituição fala de candidato no sentido de cândido, puro, pessoa depurada do ponto de vista ético”.
Por conseguinte, se essa gente é suja e responde a processos por falcatruas e toda sorte de improbidade não pode e não merece ser candidato, pois falta-lhe um requisito primordial: a vida pregressa ilibada, fundamental, sine qua non, tão indispensável quanto inafastável para o exercício de qualquer função pública.
Portanto, minha douta senhora, o que a senhora espera para rodar a baiana e declarar guerra aos que “namoram com a delitividade” (outra expressão de Carlos Ayres, que deveria ser entoada como um poema em todos os Palácios da Justiça).
A parte do Brasil que não corrompe e nem se deixa corromper está torcendo para que a senhora aplique nos corruptos (e também nos corrompidos que se deixam docemente corromper) uma bela surra com a aroeira de mato virgem de suas implacáveis decisões jurisprudenciais.
Estou louco para cumprir o tal do meu dever cívico. Da mesma forma que para exercer o meu direito se o voto for facultativo. Mas, como todo cidadão pouco chegado a qualquer tipo de ópio e ansioso pela restauração da moralidade, aguardo, para este pleito, já, já, as boas novas da sua parte.
Neste País, conseguiram transformar a esperança em dejetos orgânicos de muito mau cheiro. Mas, se a senhora quiser, a esperança pode ser desinfetada e restabelecida para o gáudio da sociedade. Para a senhora, querida dama, querer é Poder.
Afetuosamente e até 2010,
Luiz Ismaelino Valente
Procurador de Justiça Aposentado e advogado
Ex-docente de Direito Eleitoral na ESM-PA e na FESMP-PA